Por Disparada: Esclarecendo a população: 40 anos dos Tijolaços

Por Disparada: Esclarecendo a população: 40 anos dos Tijolaços


(…) É imperioso reconhecer que Brizola foi o único
político brasileiro com coragem para encarar e confrontar
o poder da grande imprensa (Alberto Dines, “Observatório da
Imprensa”, Tv Brasil, 29/06/2004).

Por Rodrigo Trivellato Garavini – Em tempos de internet, em que os políticos falam diretamente à população pelas redes sociais, o artifício em questão seria considerado um mastodonte. Mas quando retornou do exílio, em 1979, beneficiado pela Lei da Anistia, Leonel de Moura Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul (1959-1962) e deputado federal cassado pela Ditadura Militar instaurada em 1964, encontrou um país bastante diferente do que deixara. Para ficar apenas numa mudança, o Brasil que outrora era o país do rádio, entrara definitivamente na era da televisão. Brizola e seus pares não demoraram muito a percebê-lo[1], mas, para um pequena legenda recém-criada, como era o caso do Partido Democrático Trabalhista (PDT), comprar espaços nessa nova mídia dominante era inviável, por seus altos custos.

Por óbvio, não foi Leonel Brizola quem inventou a estratégia de ocupar os meios de comunicação de forma sistemática para estreitar relações com o seu público e potenciais eleitores. Políticos dos mais diferentes cargos e matizes, como os ex-presidentes dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), e do Brasil, Getúlio Vargas (1930-1945; 1951-1954), ou o ex-deputado federal e governador Carlos Lacerda (1955-1963) também tiveram bastante destaque nessa seara. Mas foi Brizola quem por mais tempo e maior assiduidade manteve essa comunicação direta com a população, mesmo que pagando pelo espaço. O meio acessível para o então governador do Rio de Janeiro eram os jornais em circulação no estado – alguns, como o Jornal do Brasil e O Globo, de abrangência nacional –, ainda que em determinados momentos tenham sido escolhidos também jornais de circulação restrita a outros estados do país para a publicação[2], despertando a ira dos opositores, que viam nesse movimento intenções além do cargo que ocupava. Não era segredo para ninguém que Brizola mirava o sonho acalentado há tempos de ser presidente da República.

A origem

Os tijolaços, como ficariam conhecidas essas comunicações escritas, eram um misto de prestação de serviços do seu governo, resposta às críticas recebidas através dos meios de comunicação e pensamentos sobre o país que se redemocratizava. O termo seria cunhado pelo jornalista e deputado federal Sebastião Nery, em sua coluna no jornal Tribuna da Imprensa de 8 de dezembro de 1984, ao sugerir um assunto para que o governador abordasse naquele espaço. Ao ser adotado pela prestigiosa “coluna do Zózimo”, do Jornal do Brasil, a partir do dia 15 de janeiro de 1985, a designação se popularizaria. O curioso é que o caminho que levaria ao primeiro Tijolaço, sob a alcunha “Esclarecendo a população”[3], publicado nos jornais em 29 de julho de 1984, seria pavimentado pelo jornal O Estado de São Paulo, antigo detrator do Trabalhismo[4], doutrina a qual Brizola se filiava e cujos ideais consolidaram a sua coerência, qualidade que seria exaltada até pelos adversários ao longo da sua vida. Brizola travou uma troca de ríspidos telegramas, alguns mandados publicar nos jornais, com Julio Mesquita Neto, então o todo-poderoso do jornal, que, em contrapartida, usava o farto espaço que possuía a seu dispor. Inicialmente, o governador pensava que eram dele os pesados artigos publicados no “Estadão” contra o seu governo, assinados por um tal N.M., o primeiro na edição de 10 de junho de 1984. Num trecho do segundo telegrama enviado a Mesquita Neto, nove dias depois, Brizola diria:

Ocupe-se, senhor Mesquita, através da página do seu grande jornal, dos seus deveres para com a população paulistana (…) Criminalidade e violência, assaltantes, bicheiros e ambientes mal-cheirosos aí não faltam, também, como no Rio de Janeiro e em todas as grandes cidades brasileiras. Esta é a triste herança que o regime implantado com a sua ajuda legou aos governos democráticos e legítimos. Enfrente essa ordem de problemas, com a mesma arrogância da maioria dos seus editoriais e sobretudo assumindo a responsabilidade que lhe cabe, por sua incisiva participação na derrocada das instituições democráticas em 64.

A republicação dos artigos do setorista do “Estadão” no Rio de Janeiro, Nertan Macedo, a verdadeira identidade do N.M. em questão, no Jornal do Brasil, a partir do dia 23 de julho, acendeu nas hostes brizolistas a certeza de que uma campanha contra o seu governo estava sendo urdida a partir de São Paulo. Aliás, Brizola usaria os primeiros tijolaços para denunciar uma “operação financeira excepcional” que o então ministro do Planejamento, Delfim Neto, montara para conceder empréstimos do BNDES a uma joint venture formada pelos grupos Estadão e Jornal do Brasil, para a produção de papel de imprensa no Paraná, ao mesmo tempo em que negava empréstimos do banco de fomento ao estado para a expansão do metrô.

Os srs. Nascimento Brito e Júlio Mesquita III, atuais herdeiros e proprietários destes dois grandes jornais, contratam o “jornalista” Nertan Macedo (NM) para fazer o trabalho sujo porque não seria naturalmente recomendável, ao bom nome das respectivas famílias, fazê-lo diretamente. Mas o verdadeiro mandante, aquele que derrama a cornucópia do Tesouro Público, é o todo-poderoso ministro Delfim Neto (Jornal do Brasil, 19 de agosto de 1984, 1º caderno, pág. 5, tijolaço no 6, Esclarecendo a população, “Jornalismo marginal”).

Naqueles primeiros tempos do tijolaço, Brizola “reunia em torno da mesa da sua casa ou no Palácio Guanabara seus assessores mais chegados e alguns políticos e os convidava a sugerir assuntos (…) Na sexta-feira, trancava-se em casa para organizar o material”[5]. Brizola então chamava seu secretário particular, Hélio Ricardo Fontoura, o “Fontourinha”, que taquigrafava o texto. Cabia à coordenadora de Comunicação Social, Martha Alencar, arredondá-lo, adequando-o ao espaço comprado, normalmente nas edições de domingo dos jornais. Com o passar do tempo, Fernando Brito, já como assessor de imprensa de Brizola[6], assumiria a função e iria além, por muitas vezes sendo o ghost writer do governador, tal o grau de afinidade entre os dois.

Ao envolver o Jornal do Brasil na sua peleia com Brizola, sem querer, Mesquita Neto seria, indiretamente, o fomentador dos tijolaços. Como explicaria Fernando Brito, era com o JB que Brizola se preocupava, pois era ainda “a meca dos chamados ‘formadores de opinião’ no Rio e, ao lado do ‘Estadão’, em nível nacional”[7]. Também era o jornal que Brizola lia diariamente durante a parte final do seu exílio nos Estados Unidos (1977-1979), e cuja rádio AM do grupo teria influência decisiva na denúncia do escândalo da Proconsult. Ao montar apuração paralela dos votos para as eleições ao governo do estado do Rio de Janeiro em 1982, seus números e projeções, comparados aos da apuração paralela montada pelo PDT, levantaram suspeitas sobre a contabilidade da empresa de informática contratada pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE), a Proconsult. Desmascarada a operação, que consistia em transferir votos nulos e brancos para o candidato do regime, Wellington Moreira Franco, do PDS, ficariam nítidas as participações do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de inteligência da Ditadura Militar, na montagem do esquema8, e das Organizações Globo, na divulgação dos números adulterados.

A participação na ofensiva iniciada pelo “Estadão” pôs fim à lua-de-mel do governador eleito, Leonel Brizola, e o JB. No tijolaço de estreia, é a estes veículos que Brizola se dirige:

A crítica, por exemplo, é um dos fundamentos da sustentação e eficácia de um governo democrático. É justamente aqui onde ressalta o papel da imprensa, quando livre de envolvimentos, de esquemas e manipulações suspeitas.
Assim deveria ser. O que vem ocorrendo, porém – em relação ao nosso Governo – é uma situação que não se verifica em nenhum outro Estado. Em lugar da informação isenta, da crítica esclarecida e fundamentada, o que certos órgãos têm feito é o ataque insultuoso e sistemático; o achincalhe; o desrespeito; insistentes matérias, sempre impregnadas de maldosas insinuações. Adulteram fatos e escondem realidades, ensandecidos pelo ódio e estimulados pelos dividendos.
(…) Espero que me reconheçam ao menos este direito: o de transformar em diálogo o deprimente monólogo a que a população perplexa vem assistindo (Jornal do Brasil, 29 de julho de 1984, 1º caderno, pág. 7, “Esclarecendo a população”).

O primeiro tijolaço ainda reservaria espaço para abordar o tema que seria “a prioridade das prioridades” do seu governo:

Alunos na Passarela – Diziam que não iam haver (sic) alunos para as escolas da Passarela do Samba. Pois nos quatro primeiros dias de inscrição, se candidataram 2.100 crianças. Já em agosto 500 crianças estarão frequentando as aulas do conjunto. E a partir do próximo ano, o espaço escolar da Passarela poderá atender a 10 mil crianças. A realidade, como se vê, é mais poderosa que a maledicência.

Apenas no primeiro governo Brizola (1983-1987), foram 24 tijolaços sob a rubrica “Esclarecendo a população”, desde este de estreia, e mais dois sob a rubrica “Governador Leonel Brizola” numa primeira série, se assim podemos classificar, que se encerrou em 3 de fevereiro de 1985. Continuando a numeração e a rubrica, após uma pequena pausa nas publicações para dar tempo ao estabelecimento do primeiro governo da Nova República, que se estendeu um pouco mais devido ao trauma causado pela morte do presidente Tancredo Neves, de 30 de junho a 6 de outubro de 1985 foram mais nove tijolaços no que seria esta segunda série. De 23 de fevereiro de 1986 até o número 67, de 1º de fevereiro de 1987, quando passou para a rubrica “Prestando contas à população” – apesar de manter a numeração até o número 70 de 22 de fevereiro, quando retornou para os últimos três artigos sob a rubrica “Governador Leonel Brizola” –, foram mais 36 artigos, a que se seguiram os cinco últimos para encerrar esta terceira e mais robusta série do primeiro governo, com um sugestivo tijolaço não numerado intitulado “Até breve”, de 15 de março de 1987, data da posse do seu sucessor, o governador Moreira Franco. A frequência maior no último ano de governo se explica pelo incremento das realizações, com destaque para o ritmo alucinado de inaugurações dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) e da própria campanha sucessória, cujo candidato de Brizola era o vice-governador Darcy Ribeiro, coautor do projeto. No meio desse caminho teve tijolaço repetindo numeração e jornais se recusando a publicá-los por um período – como foram os casos do Jornal do BrasilO Globo e Tribuna da Imprensa –, motivados principalmente pelos ataques que Brizola fazia nominalmente aos veículos e/ou aos seus proprietários. Logo no segundo tijolaço, publicado a 2 de agosto de 1984, ao reclamar da “campanha” que vinha sofrendo do Jornal do Brasil e de O Estado de São Paulo, Brizola renova a sua admiração por aquele veículo, mas ataca o seu diretor presidente, o que resultaria na interrupção temporária das publicações naquele jornal:

Particularmente, lamento ao se tratar do venerado e respeitável “Jornal do Brasil”, que para mim é uma instituição nacional, é um patrimônio do povo brasileiro. Estes valores nada têm a ver com a conduta do seu atual diretor e proprietário, M.F. do Nascimento Brito (Jornal do Brasil, 1º caderno, pág. 7, Esclarecendo a população, “Inimigos do Rio de Janeiro”).

Apesar de ter sido publicado em diversos jornais do país, sem dúvida que, para Brizola, aquele espaço praticamente fixo que o tijolaço ocupou durante os três últimos anos do primeiro governo, deve ter sido motivo de orgulho. De cima a baixo, cobrindo todo o lado direito da página 7 do Jornal do Brasil, como se fosse um espelho do espaço mais nobre do jornal naquela época, a Coluna do Castello, que ocupava todo o lado esquerdo da página 2. Ser publicado em espaço e dia fixos, apesar de mais custoso, ajudava a fidelizar o leitor. Fato é que, 76 publicações depois, o tijolaço já parecia fazer parte da paisagem do jornal. Seriam mais 22 entre 7 de junho de 1987 e 20 de março de 1988 (4ª série), atravessando o período da Constituinte e do governo Sarney (1985-1990); 15 entre 20 de agosto de 1988 e 17 de dezembro de 1989 (5ª série), que abarca o período da campanha para a primeira eleição à presidência da República após a redemocratização, em que Brizola ficaria em 3º lugar e apoiaria o candidato derrotado Luís Inácio Lula da Silva, do PT, no 2º turno; 40 entre 1º de abril de 1990 e 24 de março de 1991 (6ª série), já no período do seu segundo governo no estado do Rio de Janeiro (1991-1995); 157 entre 11 de agosto de 1991 e 28 de maio de 1994 (7ª série), idem; 25 entre 28 de junho a 2 de outubro de 1994 (8ª série), em que mais uma vez foi candidato a presidente mas, desta vez, amargando um modesto 5º lugar, atrás até do folclórico candidato Enéas Carneiro, do PRONA; 85 de 8 de fevereiro a 3 de outubro de 1998 (9ª série), no período da campanha em que foi candidato a vice-presidente na chapa encabeçada por Lula, derrotada no 1º turno para Fernando Henrique Cardoso (PSDB); quatro entre 1º e 22 de setembro de 2002 (10ª série), durante a última campanha presidencial de que participou, apoiando a candidatura de Ciro Gomes por uma Frente Trabalhista (PPS/PDT/PTB), em que centrou baterias contra a adoção do voto eletrônico e a oposição do presidente do Supremo Tribunal Eleitoral (STE) à época, Nelson Jobim, em não cumprir a lei que determinava também a impressão do “voto de segurança”. E, finalmente, a 11ª e derradeira série dos tijolaços, com 38 publicações entre 5 de junho de 2003 e 3 de junho de 2004, que cobriram o início do primeiro governo de Lula e do PT. Aliás, esse pequeno mapa dos tijolaços nos fornece um excelente quadro da energia de Brizola no último terço da sua trajetória política (pós-1984), das fases mais presentes e eufóricas, notadamente quando pautava o debate público, às mais depressivas, quando, normalmente, estava sem mandato ou não vislumbrava concorrer a algum cargo eletivo. Nesses períodos fora do executivo, inclusive, Brizola costumava pedir, através das próprias publicações, contribuições para a sua manutenção[9]. Certamente, esses 462 tijolaços[10] localizados pela pesquisa, entre 1984 e 2004, colocam Leonel Brizola na dianteira entre os políticos independentes, ou seja, que nunca foram proprietários ou trabalharam em meios de comunicação, que mais interagiram com a população através de um canal de mídia. Sobre a forma e conteúdo dos tijolaços, o ex-assessor de imprensa Fernando Brito diria:

Claro que muitas vezes, por dever de ofício e por convicção mesmo, critiquei duramente a forma que havia ali – textos longos, parágrafos imensos, metáforas, etc – de fazer comunicação. E ouvia quase sempre uma resposta: não tem importância, Brito: isso aqui é a munição que o nosso pessoal precisa para travar a polêmica. Demorei a entender que a mídia – antes e mais agora – funda seu poder na interdição do debate, do contraditório (…) Só uma vez, a cada quatro anos, nos espaços dados pelas campanhas eleitorais, podemos contestá-los (Blog Tijolaço, “Como nasceram os tijolaços de Brizola”, por Fernando Brito, publicado em 07 de fevereiro de 2015).

Os Cieps e a Globo

Além de reagir às críticas da mídia, nos Tijolaços através dos tempos, Brizola pediu eleições diretas para presidente, criticou o “ilegítimo” governo do presidente José Sarney (1985/1990) e o seu Plano Cruzado[11], acusou de neoliberal o governo de Fernando Henrique Cardoso, combateu o monopólio das comunicações das Organizações Globo, denunciou as “perdas internacionais” e, principalmente, defendeu, com fé inabalável, a maior realização dos seus governos no Rio de Janeiro: a construção das mais de 500 unidades dos CIEPs[12], o maior experimento de educação integral que o Brasil teve. A oposição ferrenha das Organizações Globo ao projeto, começou a merecer considerações do govenador no tijolaço sob a rubrica “Governador Brizola no 42”, de 27 de abril de 1986: “Os CIEPs são instituições que questionam por dentro este ‘sistema’ de injustiça social imperante em nosso país. É por isso que a Rede Globo e o jornal O Globo são contra os CIEPs”. “E por que as ‘Organizações Globo’ são contra os Cieps? Precisamente porque só defendem o elitismo e este sistema econômico de natureza colonial que transfere para o exterior as nossas riquezas naturais e os frutos do trabalho do povo brasileiro”. Essas foram as primeiras menções de Brizola às empresas da família Marinho, cujo apoio prévio ao projeto ele tentou em dois encontros com o seu patrono, o “Dr. Roberto”, ainda no início do seu primeiro governo, quando teria ouvido deste o conselho para fazer apenas “umas escolinhas”[13]. Através dos tijolaços, inclusive, podemos acompanhar a deterioração dessa relação, à medida que a campanha para a escolha do seu sucessor em 1986 avança, durante a corrida presidencial de 1989 e até chegar ao seu ápice quando Brizola volta ao comando do estado, em 1991. Um editorial “venenoso” de O Globo contra o projeto dos CIEPs, publicado a 17 de agosto de 1986, faria com que o governador interrompesse a folga anunciada dos tijolaços, em respeito à justiça eleitoral, e escrevesse no domingo seguinte texto em que justifica a sua razão de ser:

Por uma questão de princípios, um governante democrático não deve e não pode permanecer em silêncio diante da crítica predatória, diante de um noticiário sistemático e dirigido, impregnado de distorções e intrigas, de malícia e facciosismo. Da mesma forma, não deve e não pode permanecer omisso frente a impostura, indiferente diante de publicações infamantes e, mais ainda, do achincalhe de sua obra administrativa. Se o fizer, perde as condições de cumprir com o seu dever mais alto, que é o de defender e zelar elos superiores interesses da coletividade que representa [Jornal do Brasil, 24 de agosto de 1986, 1º caderno, pág. 7, Governador Leonel Brizola (56), “Restabelecendo a verdade”].

Outro editorial de O Globo, publicado extraordinariamente na primeira página do jornal no último dia do primeiro governo, 14 de março de 1986, irritou particularmente Brizola pela covardia do “xingatório” desferido contra ele e pela semelhança que guardou com o que Roberto Marinho mandara publicar no dia 2 de abril de 1964, saudando o Golpe Militar (“Ressurge a Democracia!”). Pela primeira vez, o governador dimensionava, com resignação, o tamanho da peleia em que se metera e que travaria, inclusive e principalmente através dos tijolaços, até o fim da vida:

Sei que sou uma espécie de David lutando contra este Golias gigantesco e todo-poderoso. Não disponho de um mínimo de instrumentos para enfrentá-lo. Tenho, porém, comigo, a mais avassaladora e cortante de todas as armas, que é a verdade (Jornal do Brasil, 15 de março de 1986, 1º caderno, pág. 5, “Até breve”). Sei que estou assumindo um difícil papel, uma espécie de Dom Quixote frente a este polvo gigantesco que estende os seus tentáculos por toda parte (…) Seja o que Deus quiser. Sigo a minha consciência de homem público. Este monopólio de comunicações não pode prosseguir. É pernicioso às nossas liberdades, ao regime democrático e aos nossos direitos como um povo livre (Jornal do Brasil, 19 de outubro de 1986, 1º caderno, pág. 7, Governador Leonel Brizola no 63, “Quem diz o que quer, ouve o que não quer”).

O fim

Curiosamente, os tijolaços encontraram justamente na sua última fase, sua melhor forma e conteúdo. Migraram, com poucas exceções, para a quinta-feira em espaço reduzido, com caracteres igualmente menores, provavelmente para amainar o custo das publicações. Neles, Brizola passou a abordar menos assuntos, e de uma forma mais contundente e objetiva. Passou a oferecer aos leitores sua visão sobre o país, à medida que o governo Lula abandonava as bandeiras que fizeram com que o PDT o apoiasse no 2º turno das eleições de 2002. A ideia era dar seis meses de trégua ao novo governo, mas as discussões e a aprovação da reforma da previdência apressaram o retorno dos tijolaços um mês antes do esperado, no dia 5 de junho de 2003, sob o título “Previdência: mais que um erro, uma imoralidade cruel”. A taxação dos inativos era o maior motivo da polêmica. As discordâncias se aprofundaram a ponto de o PDT declarar “independência crítica”[14] do governo em decisão do seu Diretório Nacional, por 213 votos a 3, no dia 12 de dezembro de 2003. Dos 38 tijolaços dessa última fase[15], Brizola apenas não criticou Lula e o seu governo em dois[16]. Em títulos como “Seis meses de incoerência”[17], “A esquerda que a direita gosta”[18], “O Proer do Lula”[19] e “Lula: inconsciente ou traidor?”[20], Brizola denunciou o que classificava como traições ao povo trabalhador: a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida, a renegociação de empréstimos a empresas com juros subsidiados via BNDES, o valor do novo salário-mínimo, etc. A este respeito, escreveria no seu último tijolaço, publicado no dia 3 de junho, sob o sugestivo título de “o epitáfio da esperança”:

Escrevo horas antes da votação, pela Câmara dos Deputados, do vergonhoso salário-mínimo de R$ 260 proposto por Lula. Será surpresa se ocorrer o improvável e a maioria dos parlamentares não se curvar às pressões do Planalto, que ameaça retaliar e punir aqueles que, ao contrário do Presidente, honrem seus compromissos.
Seja como for, esta decisão sobre o salário-mínimo é uma espécie de epitáfio sobre as esperanças que o nosso povo trabalhador depositou em Lula. As desculpas esfarrapadas que o Governo e ele próprio apresentam, mais que soar falso, quando produzem superávits recordes para pagar juros, têm um conteúdo de crueldade e cinismo que nada fica a dever à infame época da ditadura, quando afirmavam que era preciso fazer o bolo crescer para, só depois, reparti-lo com o povo (Correio Braziliense, pág. 7).

Os tijolaços são um documento histórico de uma vida dedicada às causas trabalhistas. À defesa de um capitalismo regulado, para garantir a proteção dos mais necessitados, e à capacitação como a melhor forma de inclusão social. No dia seguinte à publicação deste último tijolaço, Brizola participou do encontro nacional do partido. Depois viajou para descansar em sua fazenda no Uruguai, aproveitando o feriado de Corpus Christi (10 de junho). Lá contraiu uma forte gripe, o que o fez adiar um encontro com o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen, para tratar de possíveis alianças para as eleições municipais. Só conseguiu retornar no dia 17, já bastante debilitado. No domingo, 20, deitado na cama, de pijamas e tomando soro, recebeu o casal Garotinho e Moreira Franco, para tratar de alianças com o PMDB. Em seus últimos atos, Brizola tentava aproximar o PDT do centro e da direita, para fazer frente ao PT nas eleições municipais daquele ano, fazendo corar os puristas. Em sua estratégia, buscava a sobrevivência do partido. Mas, no dia seguinte, deu entrada no Hospital São Lucas, em Copacabana, com suspeita de pneumonia. Cuidado com a saúde, definitivamente, não era o forte do “engenheiro”. Realizava exames quando sofreu uma parada respiratória e não resistiu. Era o fim do líder trabalhista e dos tijolaços.

Por Rodrigo Trivellato Garavini, mestre em Ciências Políticas pela UFF
(rodrigotrivellato@yahoo.com.br)

P.S.: Para quem quiser se aprofundar no pensamento de Leonel Brizola, recomendo a caprichada edição do Centro de Memória Trabalhista e da Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini (FLB-AP), organizada por Apio Gomes e Karina Crivellani. Trata-se da íntegra dos tijolaços publicados pelo governador na imprensa entre os anos de 1984 e 1998, a serem reunidos em quatro volumes das Cartilhas Trabalhistas. O primeiro e o segundo volumes, inclusive, que cobrem os anos de 1984 a 1987 e 1987 a 1991, respectivamente, estão acessíveis em:
https://pdt.org.br/wp-content/uploads/2024/06/tijolaco-1.pdf
https://pdt.org.br/wp-content/uploads/2024/06/tijolaco-2.pdf

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[1] Entre os dias 17 de julho e 4 de setembro de 1985, Brizola, já convencido do espaço que a televisão passava a ocupar na vida do povo brasileiro, protagonizou o programa “A Hora do Governador”, na novíssima Tv Manchete, reforçando a dobradinha que se iniciou com a transmissão dos desfiles das Escolas de Samba de 1984. O programete, em espaço comprado, ia ao ar às quartas-feiras, das 21h20min às 21h50min, depois do “Jornal da Manchete – 1ª Edição”, apenas para o estado do Rio de Janeiro. Sua curta vida é explicada por um misto de baixas audiências com as pesadas críticas que recebeu da oposição, que o acusavam de perdulário e eleitoreiro, pela proximidade da eleição municipal.

[2] Correio Braziliense (DF), Zero Hora (RS), Estado de Minas (MG), Folha de São Paulo (SP) e Jornal do Commercio (PE) foram alguns desses veículos que abrigaram os tijolaços fora dos domínios fluminenses.

[3] Este também seria o nome do programa que o governador Brizola levaria ao ar na Rádio Roquete Pinto, de propriedade do estado, no dia 7 de agosto de 1986, mas que só teria mais uma edição no dia 14, devido às restrições impostas pela justiça eleitoral para o pleito daquele ano.

[4] O apoio ideológico, logístico e braçal à Revolução Constitucionalista de 1932 marcou o início das hostilidades da família Mesquita, proprietária do jornal O Estado de São Paulo, à Revolução de 1930, comandada pelo presidente Getúlio Vargas. O exílio de alguns membros da família e a intervenção sofrida em março de 1940, durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), azedaram de vez a relação. Como herdeiro do trabalhismo de Getúlio, Brizola acabaria herdando também a cisma. Em 1988, numa entrevista à revista Imprensa, Julio Mesquita Neto justificaria o apoio dado por seu jornal ao Golpe Militar de 1964 pela “determinação que o Jango e o Brizola tinham de fazer uma república sindicalista no país”.

[5] Jornal do Brasil, 06 de março de 1988, “‘Tijolaço’ de Brizola está de volta. É a palavra do candidato”, reportagem de Thais de Mendonça.

[6] Fernando Brito virou assessor de imprensa do governador em julho de 1986.

[7] Blog Tijolaço, “Como nasceram os tijolaços de Brizola”, por Fernando Brito, publicado em 07 de fevereiro de 2015. Acessível em https://vermelho.org.br/2015/02/07/fernando-brito-como-nasceram-os-tijolacos-do-brizola/

[8] Foi o artigo “Uma nova sigla eleitoral no Rio de Janeiro”, do editor adjunto da revista Veja, Elio Gaspari, publicado pelo Jornal do Brasil no dia 2 de outubro de 1982 (1º caderno, pág. 11, Opinião, coluna Coisas da Política), que chamou a atenção para as movimentações do SNI com o intuito de influir no resultado das eleições do Rio de Janeiro. Foi o que fez o futuro secretário de Fazenda, César Maia, convencer Brizola da necessidade de montagem de um esquema paralelo de apuração. Em 12 de setembro de 2004, o jornal Correio Braziliense publicou uma reportagem sobre outra tentativa de golpe, esta contra o presidente Tancredo Neves, após a sua vitória no Colégio Eleitoral em 1984, que pôs fim à Ditadura. Nesta, o general da reserva Otávio Costa, “um dos militares que tiveram encontros com Tancredo na transição”, revela que “os militares por trás do plano (…) eram os mesmos responsáveis pelo atentado contra o Riocentro, em 1981, e pelo esquema de fraude da Proconsult” (“O complô para derrubar Tancredo”, pág. 8, reportagem de Hélio Contreiras).

[9] O primeiro pedido foi feito no primeiro tijolaço publicado após deixar o governo do estado do Rio de Janeiro, em 7 de junho de 1987.

[10] Fernando Brito conta “456 publicações, entre 84 e 98” (Blog Tijolaço, “Como nasceram os tijolaços de Brizola”, por Fernando Brito, publicado em 07 de fevereiro de 2015). Apio Gomes diz que “no período entre 19 de fevereiro de 1984 e 3 de outubro de 1998, (…) Leonel Brizola publicou em torno de 500 tijolaços”. Essa diferença de números pode ser creditada a diferentes pontos-de-vista para a classificação das matérias mandadas publicar por Brizola como tijolaços. Apio, por exemplo, considera a carta enviada por Brizola ao diretor-geral do Jornal do Brasil, Manoel Francisco do Nascimento Brito, respondendo a denúncias daquele jornal, e publicada a 19 de fevereiro de 1984, como o primeiro Tijolaço, o que eu discordo.

[11] No tijolaço no 63, publicado a 19 de outubro de 1986, Brizola denunciaria que o “apoio incondicional da Rede Globo ao Plano Cruzado” representava “a contraprestação” para “vultuosas transferências” ilegais ao estrangeiro para a compra da Telemontecarlo (Jornal do Brasil, 1º caderno, pág. 7).

[12] Essas escolas, projetadas pelo arquiteto Oscar Niemeyer, funcionavam das 08hs às 17hs em turno único, onde crianças do ensino fundamental tinham aulas das disciplinas regulares no turno da manhã e a tarde era reservada para artes, esportes e reforço. A proposta, elaborada por Darcy Ribeiro com a colaboração do professorado do estado, previa ainda que os alunos fizessem três refeições e a higiene pessoal, além de terem acesso a acompanhamento médico, odontológico e psicológico.

[13] Jornal Toda Palavra, especial dos 30 anos dos CIEPs, “‘Governador, faça umas escolinhas…’ – Roberto Marinho tentou fazer Brizola abortar o projeto desde o início”, por Luiz Augusto Erthal, 2015.

[14] Este é, inclusive, o título do tijolaço publicado no dia 18 de dezembro de 2003 (Correio Braziliense, pág. 5), em que Brizola explica os motivos da saída do governo. Disponível em http://memoria.bn.gov.br/DocReader/028274_05/56033

[15] Estranhamente, essa última fase não é considerada nem por Fernando Brito, nem por Apio Gomes. Um, como já dissemos, foi colaborador assíduo de Brizola nos Tijolaços; o outro, considerado o guardião dessas publicações.

[16] “As urnas da fraude”, de 25 de setembro de 2003, e “Fraude, e agora?”, de 9 de outubro do mesmo ano. Disponíveis em http://memoria.bn.gov.br/DocReader/028274_05/49013 e http://memoria.bn.gov.br/DocReader/028274_05/50171

[17] Correio Braziliense, 3 de julho de 2003, pág. 5. Disponível em http://memoria.bn.gov.br/DocReader/028274_05/42398

[18] Correio Braziliense, 10 de julho de 2003, pág. 5. Título repetido na publicação de 22 de janeiro de 2004, pág. 9. Disponíveis em http://memoria.bn.gov.br/DocReader/028274_05/42938 e http://memoria.bn.gov.br/DocReader/028274_05/58308

[19] Correio Braziliense, 18 de setembro de 2003, pág. 7. Disponível em http://memoria.bn.gov.br/DocReader/028274_05/48447

[20] Correio Braziliense, 11 de março de 2004, pág. 5; Zero Hora, pág. 19. Disponível em http://memoria.bn.gov.br/DocReader/028274_05/62114

Fonte: https://disparada.com.br/40-anos-dos-tijolacos/