Há personagens da história política e cultural brasileira que, por sua própria existência, desmontam as simplificações que tentam aprisionar o país em categorias rígidas. José de Souza Marques é um desses nomes. Negro, neto de escravos, evangélico, maçom, trabalhista, intelectual, educador, conciliador, tudo isso em plena primeira metade do século XX, quando algumas dessas identidades, isoladamente, já significava nadar contra a corrente. Juntas, então, compunham uma figura improvável, quase impossível. Mas ele existiu. E deixou marcas.

Hoje, quando o Brasil tenta, novamente, se reconhecer enquanto nação mestiça, marcada por contradições e cruzamentos de trajetórias, José de Souza Marques ressurge como um elo interpretativo. Ele obriga o país a admitir que sua história não cabe nos rótulos fáceis que alimentam polarizações e caricaturas. Ele tensiona o imaginário nacional que insiste em separar evangélicos e progressistas, negros e elites intelectuais, maçonaria e religiosidade, trabalhismo e espiritualidade. A vida de Souza Marques é a prova encarnada de que o Brasil é mais complexo do que as narrativas binárias permitem.
Um Brasil que nasceu escravo e ainda não superou suas omissões
A trajetória de Souza Marques começa no ponto mais fundo do poço social brasileiro: neto de escravos, filho de trabalhadores humildes, nascido 29 de março de 1894, na Zona Norte do Rio e criado no interior do Estado. Aos 17 anos, retornou ao Rio praticamente analfabeto. E é aqui que a biografia ultrapassa a experiência individual e ilumina o país: como alguém vindo desse ponto de partida se torna professor, teólogo, advogado, fundador de escola, político atuante e conselheiro respeitado?
A resposta passa, inevitavelmente, pelas aquelas agendas que o Brasil não completou. A abolição tardia e inconclusa, o racismo que jamais se desfez, a falta histórica de acesso a educação básica, exatamente as pautas que Souza Marques abraçou com uma insistência quase teimosa ao longo de sua vida pública.
O Brasil mestiço, plural e possível
A biografia de Souza Marques também desmonta um equívoco que persiste no imaginário nacional: o de que existe um único rosto possível para a política brasileira. Filho da periferia carioca, ele transita entre espaços que, em teoria, não conversam entre si, e os transforma em pontes.
É educador e pastor, mas também maçom. É trabalhista brizolista, mas profundamente evangélico. É negro, mas transita com autoridade no ambiente elitista das instituições maçônicas e literárias. Essa combinação, longe de ser uma contradição, revela o Brasil real: plural, mestiço, feito de encontros improváveis.
Aldo Rebelo, em sua formulação sobre o “Quinto Movimento”, após Independência, Abolição, República e Modernização, aponta para um país que ainda precisa se reconhecer como síntese de sua diversidade. José de Souza Marques é o exemplo vivo desse movimento antes mesmo que ele fosse teorizado: um brasileiro que não se deixa reduzir, e que não vê contraditórios onde o país insiste em ver fronteiras.
A política da conciliação e a defesa do Estado laico
Talvez o episódio mais simbólico da vida política de Souza Marques seja sua atuação na controvérsia sobre o Cristo Redentor. Em tempos de disputa entre católicos hegemônicos, protestantes em ascensão e setores laicos, ele, pastor batista, articula o acordo que transforma o Cristo em monumento, e não em santuário.
A defesa do Estado laico, feita de forma madura e conciliadora, não como enfrentamento, mas como proteção da pluralidade religiosa, revela um estadista raríssimo no Brasil. Se hoje a laicidade enfrenta ameaças de todos os lados, é útil lembrar que um pastor evangélico negro, nos anos 1930, foi um dos seus principais defensores no Rio de Janeiro.
O Trabalhismo como Projeto de Nação a Ponte com Brizola
A ligação de José de Souza Marques com o trabalhismo não foi casual, tampouco meramente eleitoral. Sua adesão ao PTB expressava uma visão de país profundamente enraizada em sua própria trajetória: a crença de que o Brasil só se completaria como nação quando incorporasse o povo trabalhador, especialmente o povo negro, ao centro da vida econômica, social e política. Assim como Vargas e, sobretudo, como Leonel Brizola, Souza Marques enxergava o trabalhismo como um projeto de emancipação nacional, e não apenas como uma plataforma partidária.
Se Brizola falava em Libertação Nacional, Souza Marques praticava, no cotidiano, a libertação social pela educação. Ambos compartilhavam a percepção de que o Brasil precisava superar a herança da escravidão, do atraso e da exclusão, e que o caminho para isso era a combinação de soberania, justiça social e valorização do povo. No encontro entre o pastor educador dos subúrbios cariocas e o líder do trabalhismo, formou-se uma síntese singular: a consciência de que o Brasil mestiço precisava, finalmente, tornar-se sujeito de si mesmo.
Por que José de Souza Marques importa hoje
Ele importa porque sua existência refuta o determinismo identitário que tenta moldar a política contemporânea. Importa porque sua vida comprova que o Brasil tem vocação para sínteses e para pontes, ainda que constantemente sabote essa vocação. Importa porque sua trajetória revela o tamanho da dívida que o país tem com a educação pública e com a população negra.
Importa porque, ao contrário de tantas figuras que gritam pela ruptura, ele construiu silenciosamente as bases institucionais que fizeram o Rio de Janeiro e o Brasil avançarem. Importa porque seu modo de fazer política – firme, mas conciliador – é exatamente o que nos falta hoje.
José de Souza Marques é o Brasil que poderíamos ter sido.
Talvez ainda possamos ser, se entendermos, finalmente, o país mestiço que somos e o país desigual que precisamos superar.
E, talvez, se olharmos com mais atenção para figuras como ele, consigamos construir a libertação nacional de que tanto falava Brizola.
