A dialética da crise: hegemonia petista, suas contradições e derrotas acumuladas

A dialética da crise: hegemonia petista, suas contradições e derrotas acumuladas

As narrativas que se popularizaram nos últimos anos — seja a de que o PT foi vítima de um golpe em 2016, seja a que denuncia a ascensão do fascismo em 2018 — carecem de uma análise dialética mais profunda. Não há espaço para o acaso ou eventos isolados na construção de cenários políticos; tudo resulta do acúmulo histórico de ações concretas que conformam a correlação de forças em determinado momento. Sob essa perspectiva, o Partido dos Trabalhadores (PT) desempenhou um papel central na configuração do contexto que ele próprio denunciaria como “golpe” ou “ameaça fascista”. É importante destacar que, embora tenha ocorrido um golpe em 2016, este não teve como objetivo frear os “avanços” do governo petista, mas sim acelerar a implementação da agenda neoliberal já em curso. Em resumo, a direita percebeu que não precisava mais de Dilma para promover essa agenda e que poderia avançá-la de forma ainda mais rápida sem o PT no governo.

Esse papel central se reflete, inclusive, na maneira como a hegemonia¹ petista foi construída no campo da esquerda, sendo pavimentada com escolhas estratégicas que priorizaram o controle do do convencionamos chamar de “campo progressista”², mesmo às custas de alianças que fragilizariam a governabilidade no longo prazo e de práticas que enfraqueceram outras lideranças do espectro progressista.

Tomemos como exemplo o pacto de alternância na presidência da Câmara (acordo firmado pelo PT com o PMDB em 2007)  para a presidência da Câmara dos Deputados, rompendo a aliança com o PCdoB, que lançara Aldo Rebelo como candidato numa frente de esquerda³. Na ocasião, o PT na aliança com a direita venceu com uma margem apertada, mas sem medir as consequências de longo prazo: aquele acordo consolidou o retorno do PMDB ao controle da Câmara, abrindo espaço para que lideranças como Eduardo Cunha acumulassem poder político e financeiro. Esse acúmulo reverberaria anos depois, permitindo que o PMDB rompesse acordos internos e liderasse o impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Além disso, figuras como Geddel Vieira Lima, Eduardo Cunha e Roberto Jefferson, beneficiados por espaços estratégicos no governo, tiveram a oportunidade de operar esquemas de corrupção envolvendo estatais, como a Caixa Econômica Federal e os Correios, ampliando ainda mais seu poder e influência na política nacional.

Além disso, as escolhas econômicas no início do segundo mandato de Dilma, com o ajuste fiscal de 2015, aprofundaram o distanciamento entre o governo e sua base social, desmobilizando movimentos históricos como a UNE e os sindicatos. A relação entre base política e correlação de forças é uma via de mão dupla: ao enfraquecer sua base, o governo Dilma perdeu sustentação para resistir aos ataques que viriam da direita organizada no Congresso e nas ruas.

No campo das comunicações, os governos petistas investiram amplamente em portais e blogs alinhados com o partido, criando uma máquina de propaganda que também serviu para ataques internos. Exemplos como a desconstrução de lideranças como Marina Silva em 2014 e, posteriormente, de Ciro Gomes em 2018 e 2022 ilustram como a hegemonia foi mantida à base da eliminação de alternativas progressistas. Esses espaços de comunicação, muitas vezes apelidados de “gabinete do ódio da esquerda”, contribuíram para isolar aliados e inviabilizar frentes amplas que poderiam fortalecer o campo progressista como um todo.

Em 2018, a candidatura de Fernando Haddad à presidência seguiu a mesma lógica. Em vez de abrir mão da cabeça de chapa em prol de uma frente ampla capaz de derrotar o bolsonarismo, o PT optou por preservar sua hegemonia no campo da esquerda, mesmo sabendo que as chances de vitória eram mínimas.

“Vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar a eleição”, diz José Dirceu.

Como resultado, Bolsonaro foi eleito, mas o PT manteve o controle do campo progressista. Essa escolha também pavimentou a vitória de 2022, fruto do acúmulo político de 2018 e de alianças estratégicas que pressionaram partidos como PCdoB e PSB, enquanto isolavam o PDT e qualquer altertiva ao projeto petista.

Porém, qual é o custo dessa hegemonia? Sob a liderança do PT, a classe trabalhadora acumulou derrotas históricas, como a reforma trabalhista, a precarização crescente e o avanço de políticas neoliberais. O projeto petista, embora com nuances progressistas, permaneceu vinculado ao neoliberalismo, aprofundando contradições sociais e econômicas no país.

Assim tem sido no terceiro mandato de Lula, o governo tem aprofundado um modelo econômico que reforça o rentismo e o subdesenvolvimento, dando continuidade às políticas neoliberais de seus antecessores. Sem revisar privatizações, ampliou o maior pacote de Parcerias Público-Privadas (PPPs) da história, abrangendo setores essenciais como saúde, educação e segurança, além de infraestrutura como portos e aeroportos, financiados por instituições públicas como a Caixa e o BNDES. No campo econômico, adotou o novo arcabouço fiscal e o pacote fiscal, de Fernando Haddad, que perpetuam o arrocho nos pisos constitucionais para saúde e educação, além de limitar reajustes ao salário mínimo, aprofundando a precarização das condições de vida da classe trabalhadora.

Mesmo com a indicação de Gabriel Galípolo para o Banco Central, a política monetária segue favorecendo o rentismo, com projeções de manter a taxa SELIC em 15% para 2025. Essa estratégia consolida juros altos, inviabiliza a economia produtiva e perpetua a concentração de riqueza. Ao priorizar o mercado financeiro e não romper com as políticas anteriores, o governo Lula perde a oportunidade de implementar um projeto alternativo que fortaleça a soberania econômica e reduza desigualdades. Em vez disso, o Brasil segue prisioneiro de um modelo que desindustrializa o país, precariza serviços públicos e perpetua as contradições sociais, agravando o ciclo de dependência e subdesenvolvimento estrutural.

Defender a democracia não significa aceitar sem críticas o modelo petista de hegemonia. Pelo contrário, é preciso buscar alternativas que transcendam o neoliberalismo e reconectem a esquerda com o campo nacionalista e as demandas reais da classe trabalhadora. A correlação de forças não é imutável; ela se constrói a partir das ações concretas de seus agentes históricos. Portanto, enquanto o PT insistir em centralizar o campo progressista às custas de seus aliados e da classe trabalhadora, continuará contribuindo para a perpetuação de um ciclo de derrotas acumuladas e desse modelo economico que empobrece o Brasil e classe trabalhadora.

A verdadeira tarefa da esquerda brasileira é superar essas contradições e construir uma hegemonia que não se restrinja a partidos, mas que seja capaz de articular um projeto nacional e popular, à altura dos desafios históricos que enfrentamos. É preciso superar esse modelo economico que perpétua nosso fracasso.

—-

Notas:
[1]. A hegemonia no campo da esquerda, antes composta por uma aliança entre nacionalistas, trabalhistas, socialistas e comunistas em torno de um projeto de justiça social e soberania nacional, foi distorcida com a ascensão do PT. O partido, ao consolidar seu poder, transformou a hegemonia em um modelo restrito, que, embora se apresente como progressista, na prática se adaptou ao neoliberalismo..
[2]. O uso do termo “progressista” para designar o espectro político das esquerdas e do campo nacional-popular representa um empobrecimento conceitual e estratégico que é, no mínimo, lastimável. No passado, esse campo era marcado pela diversidade ideológica e pela força de projetos nacionais, envolvendo nacionalistas, trabalhistas, socialistas e comunistas, que articulavam um horizonte comum de transformação social e defesa da soberania popular.
[3]. Aldo formou amplo apoio de partidos de esquerda para sua reeleição a presidência da câmara, algo que 4 meses depois após a derrota formariam o Bloco Parlamentar (PDT, PSB, PCdoB, PRB, PMN e PHS), integrantes da coalizão de apoio ao Governo Lula constituído de 73 deputados federais e nove senadores, decidiu, em ato público, realizado no dia 20/06,  transformar-se em Frente de Esquerda e ganhar as ruas com um programa alternativo de desenvolvimento brasileiro.

Fontes:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2112200616.htm
https://g1.globo.com/politica/noticia/geddel-e-cunha-facilitavam-credito-da-caixa-em-troca-de-propina-diz-pf.ghtml
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/21/politica/1440124250_602504.html
https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2018-09-28/dirceu-eleicao-pt.html