Identitarismo, Tokenismo e a Revolta Resignada

Identitarismo, Tokenismo e a Revolta Resignada

A recente pressão por uma ministra negra no Supremo Tribunal Federal revela uma tensão central do nosso tempo: a luta por representatividade, legítima e necessária, corre o risco de ser convertida em instrumento de legitimação do próprio sistema que produz a exclusão. A cor da pele, o gênero ou a origem passam a ser usados como signos de progresso, ainda que nenhuma estrutura de poder se altere de fato.

No Brasil, esse fenômeno assume a forma do identitarismo, conceito que Antônio Risério descreve como a substituição da experiência coletiva e da universalidade política por um culto à diferença. Trata-se de um processo em que a identidade particular se sobrepõe à totalidade social, dissolvendo o sentido de projeto comum. O identitarismo, assim, não é a ampliação da cidadania, é a sua fragmentação.

Nos Estados Unidos, o equivalente desse processo é o tokenismo: a inclusão simbólica de indivíduos de grupos minoritários em posições de destaque, sem que isso represente mudança estrutural alguma. O tokenismo é a face pragmática do identitarismo. Ambos funcionam como válvulas de escape do sistema, que concede reconhecimento superficial para neutralizar a crítica profunda.

Um exemplo emblemático é a nomeação de Clarence Thomas, por George H. W. Bush, à Suprema Corte norte-americana em 1991. Negro e conservador, Thomas representava uma conciliação impossível: agradava ao mesmo tempo à elite branca conservadora e a parte do movimento negro que desejava ver “um dos seus” em posição de poder. O gesto, porém, foi puramente simbólico. A cor da pele não implicava compromisso com as causas negras; era apenas o verniz da diversidade a serviço da manutenção da ordem.

Outro caso ilustrativo é o da embaixadora Linda Thomas-Greenfield, representante dos Estados Unidos na ONU. Mulher negra e diplomata experiente, ela personifica a imagem de uma América diversa e progressista. No entanto, seu histórico de votos e vetos no Conselho de Segurança expõe o limite dessa representatividade. Thomas-Greenfield tem se alinhado sistematicamente à política externa de Washington, votando contra resoluções que condenam as ações de Israel em Gaza e nos territórios palestinos ocupados, inclusive exercendo o único voto contrário voto de bloqueia a criação de corredor humanitário para palestinos. A contradição é evidente: a presença de um corpo negro e feminino no centro do poder global serve para humanizar e suavizar políticas de caráter imperialista, reiterando a lógica de que a identidade individual pode ser instrumentalizada para mascarar a continuidade da dominação.

O identitarismo brasileiro segue lógica semelhante. A reivindicação de uma ministra negra ao STF pode ser justa enquanto denúncia da exclusão, mas torna-se problemática quando reduz a questão racial a um critério de aparência, dissociado de conteúdo político. O poder, sempre hábil em absorver e neutralizar discursos de contestação, transforma a luta em vitrine, e o gesto de rebeldia em revolta resignada, na expressão precisa de Angélica Lovato.

A revolta resignada é a rebeldia domesticada, a indignação que o sistema incorpora e utiliza para se legitimar. É a revolta que se acomoda, que se contenta em ver rostos novos no topo da pirâmide, enquanto a base permanece intacta. O identitarismo, nessa chave, expressa uma raiva que perdeu seu horizonte político: grita por visibilidade, mas já aceita, silenciosamente, as regras do jogo.

Essa é a mais antiga tática do poder: dividir para conquistar. A fragmentação do tecido social, em disputas entre identidades e representações, enfraquece a possibilidade de um projeto coletivo, universal e transformador. Quanto mais nos dividimos em microgrupos, mais fácil é para as elites manterem intactas as estruturas que realmente importam: o poder econômico, a hierarquia de classe, a dependência cultural.

Defender a presença de uma mulher negra no STF pode ser um gesto de justiça simbólica, mas só terá valor real se vier acompanhado de um projeto de transformação material. Caso contrário, será apenas mais um capítulo da política de aparências que nos faz confundir diversidade com emancipação, visibilidade com poder, representação com mudança.

Enquanto a revolta continuar resignada, o sistema continuará triunfando, pintado com novas cores, mas sustentado pelas mesmas estruturas. Não há outro caminho que não seja a superação do atual modelo econômico, somente um Projeto de Nação poderá trazer as transformações necessárias. Nosso dever prioritário deve ser retomar a Revolução de 1930.